O OLHO-DE-BOI DOS BEATLES

Se ainda restava alguma dúvida sobre serem Lennon e McCartney os expoentes máximos da criação musical desde Schubert, o lançamento deste álbum significou uma varrida nos últimos vestígios de vaidade cultural e preconceito burguês, com um dilúvio de composições que apenas os incultos deixarão de apreciar e só os surdos dele não se aperceberão. 
Traz o simples título The BEATLES, num envol­tório singelamente branco, cujo adorno são os nomes das canções... E aquelas quatro faces, que para alguns representam a ameaça da juventude de cabelos longos; para outros, a luta desesperada e aparentemente sem fim contra aqueles cínicos — os chamados “superiores”. 
Nos olhos dos Beatles, bem como em suas criações, vislumbra-se, como num espelho, o frágil e fragmentário da sociedade que os patrocina, representa, interpreta; que lhes faz exigências e os pune quando fazem o que os outros consideram errado. 
Paul, sempre esperançoso e pensativo; Ringo, sempre o filhinho da mamãe; George, o “terror local”, hoje “o bom rapaz”; John, ensimesmado, tristonho, mas possuidor de uma inteligência lúcida, não turbada pelo que a moralidade organizada lhe lança à conta. São eles os nossos legítimos heróis, até melhores do que merecemos. 
Não é que os Beatles sempre estejam em busca do louvor. A qualidade excelente das 30 novas canções  das alegrias simples da vida deles — e o lirismo de seus versos transbordam em fulgurantes lampejos; e tal é seu magnetismo que é impossível resistir.
Quase todas as faixas nos conduzem a um crescendo: vívidas, descui­dadas, indiferentes, leves. O tema varia, desde Piggies (você viu os grandes porcos em suas camisas brancas e engomadas?) até aquela sensação de um filme de sábado à tarde (ele foi para uma caçada ao tigre com seu fuzil para elefante, em caso de acidente, sempre levava sua mamãe); de “porque não fazemos na estrada" até as "trufas de Savoy". 
A habilidade na orquestração se desenvolve com precisão calculada. A orquestra inteira  metais, violino, carrilhão, saxofone, órgão, piano, cravo, todo tipo de percussão, flauta, efeitos sonoros  tudo com equilíbrio e virtuosismo. 
Suprimiram-se, ou melhor, ignoraram-se os dispositivos eletrônicos em favor da musicalidade. Referências ou cotações de Elvis Presley, Donovan, The Beach Boys e outros são tecidas dentro duma aura que os tornou os “tapeceiros persas” da música popular. Está tudo aqui, apenas apure o ouvido: Lennon canta “eu falei dos campos de morango” e “do tolo da colina" — o que mais resta?
Os Beatles são mais habilidosos do que propriamente virtuosos instrumentistas. Sua execução conjunta, porém, é intuitiva e admirável. Eles dobram e retorcem ritmos e frases musicais, com aquela liberdade total que dão às suas aventuras harmônicas  o frenesi da expectativa e do imprevisível. As vozes — e a de Lennon em particular — são mais um instrumento: lamentoso, estridente, zombeteiro, choroso. 
Há uma consensual determinação de escaparem da falsa intelectualização que usualmente os cerca e à sua música. A letra é quase sempre deliberadamente simples, como a composição Birthday, que encerra versos como “feliz aniversário para você". Outra em que é repetido “boa noite". Ainda outra expressa: “estou tão cansado, não consegui pregar o olho". A música é, igualmente, despojada de tudo, exceto da mais pura harmonia e ritmo, de sorte que aquilo que resta é um prolífico jorro de melodia, em uma criação musical de inequívoca clareza e beleza. 
A ironia e a mordacidade, que emprestam à sua música uma dificuldade e um limite, ainda estão borbulhantes: “Lady Madonna tentando viver dentro de suas posses; oh, sim, olhando através de lentes de cebola". A severidade na imaginação é ainda um tanto mais dura: “a águia bica meu olho, o verme corrói meu osso”; “nuvens negras, negros pássaros; asas partidas, lagartos, destruição". 
E a mais grotesca  uma extraordinária faixa que se chama simplesmente Revo­lução 9 e encerra efeitos de som, murmúrios ouvidos ao acaso, formalis­mo retrógrado, sons discordantes de lembranças subconscientes de uma civilização que se debate. Cruel, paranoica, inflamada, agonizante, sem esperança, que ganha forma por meio de uma voz anônima de bingo, que apenas segue repetindo “número nove, número nove, número nove”, até que você sente vontade de gritar. A melancolia acumulada se reflete inteiramente nas suas propostas, como um véu purpúreo de irreal otimismo — fulgurante, inacessível, afetuoso. 
Por fim, tudo o que você tem a fazer é se levantar e aplaudir. Qualquer que seja a medida do seu gosto na música popular, você o satisfará aqui. Se você acha que música popular é Engelbert Humperdinck, creia: os Beatles foram um pouco mais além — sem sentimentalismos, mas apaixonadamente. Se pensa que o popular é rock’n'roll, saiba que eles o aprimoraram ainda mais, nas praias distantes da imaginação, ainda não palmilhadas por outros. 
Este álbum lhes consumiu cinco meses para o preparo. E, para o caso de você achar que foi muito lento, saiba que desde sua conclusão até a data destas linhas, eles já compuseram outras 15 canções. Nem mesmo Schubert trabalhou nesse ritmo.

*Tony Palmer, The Observer 1969.

Super DeLuxe Edition 2018

                      
    


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